Com uma combinação de programas federais e municipais, a megalópole brasileira está modernizando prédios na região central
São Paulo, a maior cidade do Hemisfério Sul, com uma população de quase 11,5 milhões, tem um déficit de 400 mil unidades habitacionais. Isso é mais do que o total de residências em cidades como Washington D.C. ou São Francisco.
A cidade e o resto do Brasil fazem uma nova tentativa de resolver um problema que se tornou indissociável das políticas local e nacional. Desta vez, São Paulo está aplicando lições aprendidas há mais de uma década, quando o governo federal lançou um amplo programa de habitação de interesse social, que permitiu construir mais de 8 milhões de moradias, mas foi muito criticado por exacerbar a desigualdade e contribuir para a expansão urbana.
São Paulo é o símbolo da drástica urbanização que transformou o Brasil nos últimos 60 anos. Desde 1960, a porcentagem da população brasileira que vive em cidades subiu de 45% para 87%. A enorme região metropolitana de São Paulo, com 20 milhões de habitantes, ganhou cerca de 2 milhões de novos moradores na última década, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
A cidade é o principal motor da economia brasileira. Com um histórico de crescimento caótico, São Paulo tem sido o destino de grandes fluxos imigratórios. Vieram imigrantes da Europa, da Ásia e do Oriente Médio, assim como de outras partes do Brasil. Desde o início do século XX, levas de retirantes, como se costumava chamar os migrantes da região pobre e árida do Nordeste, rumaram para São Paulo em busca de trabalho e de uma vida melhor.
Entre eles, estava Luiz Inácio Lula da Silva, que, em 1952, chegou à cidade com sete anos. No ano passado, Lula iniciou seu terceiro mandato como presidente do Brasil, após ocupar esse cargo de 2003 a 2011. Seu governo atual está ampliando o Minha Casa, Minha Vida (MCMV), um programa habitacional que ele mesmo lançou em 2009.
O antecessor de Lula, o ex-presidente Jair Bolsonaro, reduzira drasticamente esse programa enquanto esteve à frente do governo. Contudo, após se reeleger em 2022, Lula retomou o MCMV e, desta vez, aumentou os subsídios, baixou as taxas de juros e elevou os valores máximos dos imóveis. Em um ano, foram vendidas mais de 1 milhão de unidades habitacionais, metade da meta estabelecida para o fim de 2026.
Curva de aprendizagem
Desde a criação do programa, as famílias na faixa de renda mais baixa (com renda não superior a US$ 516 por mês) podem participar de sorteios locais para ganhar uma moradia. No entanto, nos primeiros anos do programa, a maioria dos novos projetos estava localizada longe dos centros urbanos. Seus críticos apontam que o programa agravou a desigualdade ao relegar os pobres a áreas com serviços públicos limitados e longe dos empregos, o que os obrigava a longos deslocamentos em redes de transporte público muitas vezes precárias.
Por esse motivo, mais da metade dos contemplados nos sorteios acabou optando por deixar o programa, de acordo com um estudo sobre os beneficiários feito no Rio de Janeiro, a segunda maior cidade do Brasil.
“As pessoas selecionadas recusavam a moradia gratuita porque sabiam que a mudança significaria se afastar de seus empregos e de suas redes de apoio social”, opina o economista Carlos Alberto Belchior, um dos autores do estudo.
Os pesquisadores constataram que o programa não conseguira reduzir a pobreza. Dependendo da localização da nova casa, era menor a probabilidade de os beneficiários manterem um emprego formal após se mudarem. Em regiões sem trabalho nem infraestrutura, os moradores passavam menos meses por ano empregados com carteira assinada e era maior a probabilidade de mudar de emprego.
A volta ao centro da cidade
Renovado e relançado em 2023, o programa do governo Lula prevê mais incentivos para melhorar o acesso a empregos e serviços. Ele se baseia no Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano de São Paulo, aprovado em 2014, quando Fernando Haddad, hoje ministro da Fazenda, era prefeito.
Esse plano visa aumentar a densidade populacional ao longo dos corredores de transporte urbano, permitindo que se construam prédios mais altos em troca do aumento do número de unidades habitacionais menores e de baixo custo. O plano dobrou o número de regiões prioritárias, como o moribundo centro da cidade, para a construção de moradias para famílias de baixa renda, direcionando uma grande parcela do orçamento habitacional para a aquisição de terrenos para projetos de interesse social.
O centro da cidade, que já concentrou as atividades culturais de São Paulo, vem em uma espiral descendente desde o fim da década de 1960, quando o setor bancário se transferiu, primeiro, para a ainda icônica Avenida Paulista e, depois, para mais longe, para seu local atual, na Avenida Brigadeiro Faria Lima. Em consequência, se estima que 20% dos prédios da região central estejam desocupados.
A revitalização do centro da cidade e a oferta de moradias para famílias de baixa renda se tornaram um dos principais temas da campanha eleitoral deste ano no município. Em junho, no início de sua vitoriosa campanha para reeleger-se, o prefeito Ricardo Nunes anunciou a desapropriação de cinco prédios para conversão em moradias de baixa renda por meio de parcerias público-privadas.
Outros 164 imóveis satisfazem os critérios para desapropriação. Nunes, apoiado pelo governador do Estado de São Paulo, Tarcísio de Freitas, e por Bolsonaro, disse que planeja trabalhar em estreita colaboração com o governo estadual, cujo ambicioso plano prevê transferir as repartições do governo do Morumbi, um dos bairros nobres da cidade, para o centro. A habitação é um componente significativo do programa, e uma parte das 268 mil unidades habitacionais que Tarcísio prometeu construir para a população de baixa renda até o fim de seu mandato está no centro da cidade.
Nas eleições de outubro, Nunes derrotou Guilherme Boulos, que ganhou notoriedade em todo o país ao promover o acesso a moradias para pessoas de baixa renda e liderar ocupações de prédios abandonados como parte do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST). Seu plano habitacional previa subsídios para empresas com projetos do MCMV localizados próximos a transportes e outros serviços e que visassem prédios vagos de propriedade de órgãos públicos diversos. Por exemplo, o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) tem dezenas de imóveis vazios no centro da cidade que poderiam ser transformados em moradias de interesse popular.
Uma das primeiras histórias de sucesso desse modelo é o edifício Dandara, na famosa Avenida Ipiranga, bem no centro da cidade. Outrora sede da Justiça do Trabalho, o prédio foi ocupado em 2009 pelo movimento social Unificação das Lutas de Cortiços e Moradia (ULCM). A síndica do edifício, Marli Baffini, é ativista da ULCM há quase duas décadas e moradora desde 2017. Marli e seu marido, Régis, já tinham tentado várias vezes conseguir financiamento imobiliário, mas a falta de bens próprios e a renda relativamente baixa não lhes permitiram ter acesso a esse mercado.
“Não tenho palavras para expressar minha felicidade quando finalmente recebi a chave do meu apartamento”, disse Marli. Ela e o marido antes moravam de aluguel na região noroeste da cidade. Para trabalhar um turno no afluente bairro de Moema, do outro lado da cidade, Régis tinha de sair de casa às cinco da manhã e percorrer um trajeto de duas horas até o emprego.
“Hoje em dia, ele leva apenas 20 minutos para chegar ao trabalho, e podemos ir andando a três estações de metrô diferentes”, disse Marli.
A empresa de arquitetura e engenharia Integra, com sede em São Paulo, foi responsável pelo retrofit do Dandara e trabalha em estreita colaboração com a ULCM e outros movimentos sociais em projetos pela cidade. Os ativistas têm um papel central nas decisões sobre as reformas e contribuem para o seu êxito, afirma Adelcke Rossetto, sócio fundador da Integra.
A empresa está buscando a aprovação de quatro outros projetos em São Paulo liderados por movimentos sociais, dois deles no centro da cidade.
“As autoridades finalmente estão entendendo que o centro da cidade precisa de moradias”, disse Rossetto. Esse modelo é mais adequado para edifícios de propriedade do governo, acrescentou, pois o custo da aquisição de imóveis privados para moradias de baixa renda é proibitivo.
O setor privado no comando
Graças às mudanças implementadas para ser retomado, o programa MCMV desponta hoje como um dos principais catalizadores da expansão do mercado imobiliário no Brasil. O país registrou um recorde de vendas de casas novas no segundo trimestre deste ano. Quase metade das mais de 93 mil unidades vendidas eram novos imóveis do MCMV, de acordo com a Câmara Brasileira da Indústria da Construção.
Segundo Ricardo Zylberman, diretor de operações da construtora Magik LZ, para ter resultados nesse segmento, é essencial compreender as necessidades dos compradores de casas de baixa renda e conseguir construir rapidamente com um orçamento apertado. A empresa montou uma lista de requisitos que garantem o sucesso de seus projetos do MCMV.
“O acesso a transporte público é fundamental”, apontou Zylberman. Os empreendimentos não podem estar a mais de 10 minutos a pé do transporte público. Além disso, precisam oferecer fácil acesso a serviços básicos, como supermercados, farmácias e padarias, pois a maioria dos moradores não dispõe de carro.
As necessidades da força de trabalho local mudam constantemente e, por isso, a Magik precisou adaptar seus projetos. Os salões de festa contam com Internet de alta velocidade e ar condicionado para que também possam ser usados como espaços de coworking pela crescente força de trabalho remota.
“Encontramos uma fórmula que funciona”, afirma Zylberman. Construir um grande número de unidades é “um processo industrial que exige a construção rápida de um apartamento de alta qualidade que necessite de pouca manutenção”.
Para Zylberman, o centro de São Paulo ainda oferece numerosas oportunidades para habitações de baixa renda porque existem terrenos disponíveis a preços razoáveis perto de transporte público e comércio.
Ainda assim, apesar de sua escala, o MCMV é tão somente uma peça do quebra-cabeça. Inês Magalhães é vice-presidente da Caixa Econômica Federal, a maior instituição de financiamento habitacional do Brasil, que administra o programa. Para ela, resolver o déficit de moradias para a população de baixa renda exige uma ampla gama de políticas. Ela destaca a importância de estabelecer mais parcerias entre estados, municípios e o governo federal, citando programas estaduais e locais que oferecem subsídios às famílias para ajudá-las a pagar a entrada de uma nova unidade habitacional.
“O pagamento da entrada costuma ser o maior desafio para as famílias participarem do programa Minha Casa, Minha Vida porque, como a maioria paga aluguel, é mais difícil conseguir poupar”, explicou. “O Brasil precisa de 1 milhão a 1,5 milhão de novas moradias por ano para evitar que o déficit habitacional cresça. Não é fácil reduzir esse déficit, mas, com as políticas certas, é possível fazer a diferença.”