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Criptoativos como moeda nacional? Um passo grande demais

Por Tobias Adrian e Rhoda Weeks-Brown
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Novas formas de dinheiro digital têm o potencial de proporcionar pagamentos mais rápidos e mais baratos, aumentar a inclusão financeira, melhorar a resiliência e a concorrência entre os provedores de pagamentos e facilitar as transferências internacionais.

Mas fazer isso não é simples e exige investimentos significativos, além de escolhas políticas difíceis, como esclarecer o papel dos setores público e privado no fornecimento e na regulação das formas digitais de moeda.

Alguns países podem ser tentados a pegar um atalho: a adoção de criptoativos como moeda nacional. Com efeito, muitos são seguros, de fácil acesso e com custos de transação baixos. Contudo, acreditamos que, na maioria dos casos, os riscos e custos superam os possíveis benefícios.

Criptoativos são tokens de emissão privada, baseados em técnicas criptográficas e denominados em sua própria unidade de conta. Seus preços podem ser extremamente voláteis. O Bitcoin, por exemplo, atingiu um pico de US$ 65.000 em abril e caiu para menos da metade desse valor em apenas dois meses.

Ainda assim, o Bitcoin continua vivo. Para alguns, é uma oportunidade de transacionar de forma anônima – com boas ou más intenções. Para outros, é uma forma de diversificar suas carteiras e manter um ativo especulativo que pode gerar fortunas mas também perdas significativas.

Assim, os criptoativos são fundamentalmente diferentes de outros tipos de dinheiro digital. Os bancos centrais, por exemplo, estão considerando a possibilidade de emitir moedas digitais – dinheiro digital emitido na forma de um passivo do banco central. Empresas privadas também estão tentando derrubar barreiras, com remessas pelo celular, que são populares na África Ocidental e na China, e com stablecoins (moedas estáveis), cujo valor depende da segurança e liquidez dos ativos que as lastreiam.

Criptoativos com curso legal?

O Bitcoin e seus pares permaneceram basicamente à margem das finanças e dos pagamentos, mas alguns países estão analisando seriamente a possibilidade de conceder aos criptoativos o status de curso legal e até mesmo de transformá-los em uma segunda (ou talvez única) moeda nacional.

Se receber o status de curso legal, um criptoativo teria que ser aceito pelos credores em pagamento de obrigações monetárias, inclusive impostos, de forma análoga às notas e moedas emitidas pelo banco central.

Os países podem ir ainda mais além, aprovando leis para estimular o uso de criptoativos como moeda nacional, ou seja, como unidade monetária oficial (na qual as obrigações monetárias podem ser expressas) e uma forma obrigatória de pagamento para as compras rotineiras.

É improvável que os criptoativos se tornem populares em países com inflação e taxas de câmbio estáveis e instituições confiáveis. As famílias e as empresas teriam poucos incentivos para fixar os preços ou poupar em um criptoativo paralelo, como o Bitcoin, mesmo que ele tivesse curso legal ou recebesse o status de moeda. Seu valor é excessivamente volátil e totalmente desvinculado da economia real.

Mesmo em economias relativamente menos estáveis, o uso de uma moeda de reserva reconhecida mundialmente, como o dólar ou o euro, provavelmente seria uma opção mais atraente do que a adoção de um criptoativo.

Um criptoativo pode se tornar popular como veículo de pagamento para pessoas sem acesso a serviços bancários, mas não como reserva de valor. Ele seria trocado por dinheiro de verdade imediatamente após seu recebimento.

Por outro lado, a moeda real nem sempre está prontamente disponível ou é facilmente transferível. Além disso, a legislação de alguns países proíbe ou restringe os pagamentos em outras formas de dinheiro. Isso poderia fazer pender a balança para o uso generalizado dos criptoativos.

Prosseguir com cautela

O custo mais direto da adoção generalizada de um criptoativo como o Bitcoin é a estabilidade macroeconômica. Se os bens e serviços tivessem seus preços fixados em uma moeda real e um criptoativo, famílias e empresas dedicariam tempo e recursos consideráveis a escolher qual tipo de moeda manter, em vez de se envolverem em atividades produtivas. De forma análoga, as receitas públicas estariam expostas ao risco cambial se os impostos fossem fixados antecipadamente em um criptoativo enquanto a maioria das despesas continuasse em moeda local, ou vice-versa.

Além disso, a política monetária também perderia força. Os bancos centrais não podem definir taxas de juros em uma moeda estrangeira. Em geral, quando adota uma moeda estrangeira como sua própria, um país “importa” a credibilidade da política monetária externa e espera alinhar sua economia – e suas taxas de juros – com o ciclo econômico no exterior. Nada disso é possível no caso da adoção generalizada de um criptoativo.

Como resultado, os preços internos se tornariam extremamente instáveis. Mesmo se todos os preços fossem cotados em Bitcoin, por exemplo, o preço dos bens e serviços importados apresentaria flutuações imensas, seguindo os caprichos das avaliações do mercado.

A integridade financeira também seria afetada. Sem medidas robustas para combater a lavagem de dinheiro e o financiamento do terrorismo, os criptoativos podem ser usados para legitimar recursos de origem duvidosa, financiar o terrorismo e sonegar impostos. Isso poderia apresentar riscos para o sistema financeiro e o equilíbrio fiscal de um país, além de prejudicar o relacionamento com outros países e com bancos correspondentes.

Visando limitar os riscos à integridade financeira, o Grupo de Ação Financeira definiu uma norma para regulamentar os ativos virtuais e os provedores de serviços relacionados. Contudo, a aplicação dessa norma ainda não é uniforme nos diversos países, o que pode ser problemático, dada a possibilidade de atividades transfronteiriças.

Podem surgir outras questões legais. O status de curso legal exige que um meio de pagamento seja amplamente acessível. Entretanto, o acesso à Internet e à tecnologia necessária para a transferência de criptoativos ainda é limitado em muitos países, gerando dúvidas quanto à justiça e à inclusão financeira. Além disso, o valor da unidade monetária oficial deve ser estável o suficiente para permitir seu uso nas obrigações monetárias de médio e longo prazo. E mudanças no status de curso legal e na unidade monetária de um país normalmente exigem alterações complexas e abrangentes na legislação monetária para evitar a desarticulação do sistema legal.

Os bancos e outras instituições financeiras poderiam também estar expostos a flutuações gigantescas nos preços dos criptoativos. Não está claro se a regulamentação prudencial contra exposições dos bancos a moedas estrangeiras ou ativos arriscados poderia ser cumprida se o Bitcoin, por exemplo, recebesse status de curso legal.

Ademais, o uso generalizado de criptoativos poderia prejudicar a proteção ao consumidor. Famílias e empresas poderiam perder patrimônio devido a grandes oscilações de valor, fraudes ou ataques cibernéticos. Embora a tecnologia por trás dos criptoativos tenha se mostrado extremamente robusta, sempre é possível a ocorrência de falhas técnicas. No caso do Bitcoin, seria difícil recorrer, pois não existe um emissor legal.

Finalmente, a mineração de criptoativos, como o Bitcoin, consume volumes imensos de eletricidade para alimentar as redes de computadores que verificam as transações. As implicações ecológicas da adoção desses criptoativos como uma moeda nacional poderiam ser muito graves.

Buscar um equilíbrio

Como moeda nacional, os criptoativos – entre eles o Bitcoin – apresentam riscos significativos para a estabilidade macrofinanceira, integridade financeira, proteção do consumidor e meio ambiente. As vantagens das tecnologias subjacentes, como a possibilidade de serviços financeiros mais baratos e mais inclusivos, não devem ser negligenciadas. Entretanto, os governos precisam agir para fornecer esses serviços e aproveitar novas formas de moedas digitais sem descuidar da estabilidade, eficiência,  igualdade e sustentabilidade ambiental. Tentar transformar os criptoativos em moeda nacional é um atalho desaconselhável.

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Tobias Adrian é o Conselheiro Financeiro e Diretor do Departamento de Mercados Monetários e de Capitais do FMI. Nessa função, dirige o trabalho do FMI relacionado com a supervisão do setor financeiro, as políticas monetária e macroprudencial, a regulação financeira, a gestão da dívida e os mercados de capitais. Antes de ingressar no FMI, foi Vice-Presidente Sênior do Federal Reserve Bank de Nova York e Diretor Adjunto do Grupo de Estudos e Estatística. Lecionou na Universidade de Princeton e na Universidade de Nova York e é autor de numerosos artigos em publicações especializadas de economia e finanças, como American Economic Review e Journal of Finance. Seus estudos concentram-se nas consequências agregadas da evolução dos mercados de capitais. Tem um doutorado do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), um mestrado da London School of Economics, um diploma da Universidade Goethe de Frankfurt e um mestrado da Universidade Dauphine de Paris.

Rhoda Weeks-Brown é Conselheira Jurídica e Diretora do Departamento Jurídico do FMI. Assessora a Diretoria Executiva, a Direção-Geral, o corpo técnico e os países membros em todos os aspectos jurídicos das operações do FMI, tratando, inclusive, das suas funções creditícias, reguladoras e consultivas. Ao longo de sua carreira no FMI, liderou o trabalho do Departamento Jurídico em uma ampla gama de assuntos importantes relacionados a políticas e países. Já escreveu artigos e muitos documentos da Diretoria Executiva sobre todos os aspectos do Direito do FMI e coministrou um seminário na Universidade de Tulane sobre esse tema.

Foi também Subdiretora do Departamento de Comunicação do FMI, onde liderou as iniciativas de comunicação e sensibilização do FMI na África, Ásia e Europa; cumpriu um papel fundamental na transformação da estratégia de comunicação do FMI e comandou a comunicação sobre políticas estratégicas do FMI acerca de temas jurídicos e financeiros fundamentais.

Tem diploma de Juris Doctor da Faculdade de Direito de Harvard e bacharelado em Economia (summa cum laude) da Howard University. Antes de ingressar no FMI, trabalhou no escritório de advocacia Skadden em Washington, DC. É membro da Ordem dos Advogados de Nova York, Massachusetts e Distrito de Columbia e membro da Ordem dos Advogados da Suprema Corte. Faz parte do Conselho da TalentNomics, Inc., uma organização sem fins lucrativos voltada para o desenvolvimento de mulheres líderes em nível mundial.